Descartes

 

VIDA E OBRA

Nasceu em 1596 em Haia e morreu em 1650 em Estocolmo. Seu nome de batismo René Descartes receberá uma versão em latim: Renatus Cartesius, de onde vem o termo “cartesiano” para se referir a ele. Descartes é conhecido como um dos pilares do pensamento moderno; para muitos o maior deles, tanto na filosofia quanto na matemática.

Na juventude estudou em uma escola Jesuíta de renome, onde teve contato com o pensamento clássico e medieval. Na obra “Discurso do Método” Descartes declara sua decepção com os ensinamentos da filosofia ensinada ali, cheias de controvérsias que demonstravam a ausência de um alicerce que pudesse sustentar a ciência, ou seja, o conhecimento da realidade. Compreende que a matemática poderia fornecer esse alicerce, mas nada realmente significativo tinha, até então, sido feito com ela.

Terminados os estudos Descartes decidiu pela carreira militar. Alista-se no exército do príncipe Maurício de Nassau. Essa decisão forneceu a Descartes ocasiões para mergulhar profundamente em seus estudos. Em 1618 conheceu Isaac Beeckman, um jovem cientista holandês, que apresentou a ele novidades das pesquisas sobre a natureza, seguindo uma visão mecanicista. Descartes segue entusiasmado com a possibilidade de trabalhar em benefício da ciência e, na noite de 10 de novembro de 1619, através de três sonhos, concebe os alicerces do que poderia ser uma ciência universal. Mas levará tempo ainda para que Descartes escreva suas obras mais famosas “O discurso do método” (1637) e “Meditações Sobre a Filosofia Primeira” (1641).

Em 1649 a Rainha Cristina da Suécia o convida para ir e ficar em Estocolmo. Descartes hesitou mas aceitou o convite. E apesar do tratamento honroso concedido a ele, teve dificuldade de se adaptar ao estilo de vida e ao clima. Em 1650 morre em decorrência de uma pneumonia.

Descartes é principal nome do Racionalismo moderno.

 

O DISCURSO DO MÉTODO

Em sua obra “Discurso do Método” Descartes apresentou o seu interesse na elaboração de um conhecimento seguro. Porém, diferente do que defendeu Francis Bacon, Descartes propôs que o conhecimento racional era o único caminho para superar todas as dúvidas propostas pelos céticos. Dessa forma, todo material empírico estaria subordinado aos critérios racionais. Dessa forma, promove uma reformulação da metafísica para atender aos novos objetivos da filosofia natural. Sua meta era desenvolver um método que conduzisse ao conhecimento das verdades, o que ele sintetiza em quatro preocupações ordenadas:

1°) Apoiar-se em evidência, pois ela é a única garantia de que o conhecimento tem um apoio real. Descartes busca uma evidência racional: clara, de fácil distinção e incontestável. Assim ele se expressa: Não aceitar nenhuma coisa como verdadeira se não soubesse com evidência que ela era assim - isto é, consistiria em evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e compreender em meus juízos apenas aquilo que se apresentava tão clara e distintamente a meu espírito que eu não tivesse nenhuma oportunidade de duvidar”.

2°) Analisar, dividindo ao máximo os objetos investigados, de forma que cada tópico da investigação se torne uma unidade simples. Dividir cada dificuldade que examinasse em quantas partes fosse possível e exija sua melhor solução.”

3°) Sintetizar, agrupando os elementos estudados de acordo com uma ordem e estabelecendo um todo. Conduzir meus pensamentos em ordem, começando pelos objetos mais simples e mais propícios ao conhecimento, para construir, pouco a pouco, como que por degraus, o conhecimento dos objetos mais compostos”.

4°) Enumerar os casos, as conclusões e os princípios, revisando todas as possibilidades de falhas. Fazer, em todos os casos, enumerações tão completas e revisões tão gerais que estivesse assegurado de não omitir nada.”

Vale a pena ressaltar que Descartes concebeu a noção de evidência diferentemente do que nosso senso comum atual costuma entender. Hoje, o senso comum fala de algo evidente como algo que é óbvio por causa de sua manifestação aos sentidos. Mas Descartes entende que nada do que os sentidos podem fornecer estará totalmente livre de incertezas, portanto, não poderia ocupar o lugar de pilar do conhecimento. Apenas no campo da racionalidade seria possível encontrar tal ponto de apoio. Essa relação da evidência com a racionalidade ficará mais clara no próximo tópico.

 

DA DÚVIDA HIPERBÓLICA AO “PENSO LOGO SOU”

Descartes necessitava de um pilar que sustentasse sua filosofia e com ela preparar as pesquisas que levariam ao conhecimento verdadeiro da realidade. Mas já havia uma história longa na humanidade com diversas tentativas e em todas parecia que os céticos foram capazes de encontrar problemas. Sempre houve um motivo para instalar uma dúvida, a incerteza se fazia presente. Por isso resolveu que utilizaria a estratégia dos céticos como parte integrante de seu método.

Dos quatro procedimentos apontados anteriormente, o primeiro se refere à busca por evidência. Descartes segue nessa busca através daquilo que chamamos de dúvida hiperbólica ou dúvida metódica: levar a dúvida às últimas consequências. Se a dúvida instalasse uma incerteza, bastaria como motivo para rejeitar. O objetivo era garimpar para encontrar algo indubitável, pois esta é a principal característica da evidência racional: algo que nem mesmo o maior esforço de nossa imaginação consiga negar. O procedimento é resumido no “Discurso sobre o Método” e apresentado de maneira mais detalhada nas “Meditações sobre a Filosofia Primeira”. Decidido em proceder com a dúvida hiperbólica, divide todas as coisas em tipos que deverá pôr em dúvida. Ordena do mais simples para o mais complexo e depois procede a análise de cada parte.

Começa, então, pelas informações fornecida pelos sentidos. É fácil reconhecer que algumas vezes podemos ser enganados por eles. Achamos que vimos algo quando não vimos, que escutamos quando não escutamos, confundimos sabores etc. Não dá para confiar plenamente nos sentidos.

Isso leva a um segundo ponto. Conhecemos coisas através dos sentidos que nos parecem reais. O computador ou o celular na sua frente existem, não é verdade? O caderno onde você faz anotações também. Eles existem, são reais. Mas será que podemos confiar plenamente nisso? Lembremos que estamos aqui para uma hipérbole, ou melhor, uma dúvida hiperbólica! Então Descartes laça mão de um argumento que ficou conhecido como argumento do sonho: seríamos capazes de distinguir se estamos em um sonho ou acordados enquanto ainda estamos em um sonho? Teríamos critérios objetivos que nos mostrassem essa diferença? Na ausência de um critério que garanta a certeza, deixemos as coisas materiais de lado. Vamos buscar por outra coisa. Além do mais, as imperfeições dos sentidos podem nos fazer ver as coisas diferentes do que elas realmente são. Por exemplo, um cego de nascença não conhece as cores do mundo, mas quem disse que as cores do mundo são as que eu vejo? De forma que a existência das coisas é incerta, e se fossem existentes, nosso conhecimento pelos sentidos seria incerto.

Passa a falar, então, de coisas que parecem não depender dos sentidos e que aparecem diretamente à razão. Entre elas os elementos matemáticos parecem os mais regulares, o campo onde a certeza parece realmente estar presente. Teríamos motivo para duvidar dos cálculos matemáticos? Descartes nos traz outro argumento imaginativo conhecido como “Deus enganador”: imagine que Deus, em sua infinita bondade, resolve nos proteger de sofrer. Ele sabe que somos seres limitados e não podemos compreender sua obra como Ele compreende. Isso nos faz sofrer. Para impedir nosso sofrimento ele nos faz ver a realidade de forma distorcida, de forma a corrigir o que não compreendemos para algo que nos parece razoável. Nossa matemática e todos os conceitos sobre as essências parecem cheios de exatidão, mas estão longe de refletir a realidade. Ainda completa esse argumento com um segundo, conhecido como “gênio maligno”: e se um gênio maligno ou um demônio estivessem nos iludindo, criando essa realidade, a qual ficamos apegados, para futuramente destruir nossas ilusões? Ele poderia brincar com nossas crenças para nos fazer sofrer. Assim sendo, como podemos estar enganados em nossos pensamentos, não devemos usá-los como nossa evidência fundamental.

De todo modo, nem os sentidos, nem a razão, podem apresentar um objeto que apareça a nossa consciência como algo que realmente conhecemos. O que fazer então? A própria conclusão desse raciocínio fornece a pista. Todos os argumentos levam a duvidar da existência dos seres pesquisados, não sobrando nada. Mas o próprio processo revelou algo de evidente: não pode haver dúvida sem alguém para duvidar. Aquele que duvida tem que existir. Qualquer tentativa de duvidar da própria existência só confirmaria, para quem duvidasse, que está ali, duvidando. Portanto, concluiu: se duvido, existo; penso, logo sou!

“Cogito ergo sum”! Este passou a ser o ponto de apoio que Descartes usou para erguer sua ideia de ciência.

 

 

SUJEITO PENSANTE

Descartes passa a usar sua máxima “cogito ergo sum” (penso logo sou) como sua evidência, servindo de ponto de apoio para as reflexões que se seguem. Ele precisa conhecer melhor esse sujeito e avaliar seus conteúdos, ou melhor, seus saberes.

Primeiro, se perguntou sobre as características do próprio ser. Se ele é algo, é o quê? Inicialmente não pode ter certezas a partir de seu corpo, pois não pode confiar nos seus sentidos, tudo que se refere aos corpos é contingente e somente a própria consciência é necessária. Os corpos, dada a sua característica material, são chamados por Descartes de res extensa (coisa extensa, material), e o corpo que parece servir à consciência não se mostrou fundamental para sua existência. Ao contrário, somente a consciência se mostrou confiável. Desse modo, a consciência, o sujeito cognoscente, tem como sua característica fundamental (sua substância) a própria atividade de pensar, levando Descartes a identificá-la como res cogitans (coisa pensante). Este é um ponto importante: o dualismo entre mente e corpo, a partir de Descartes, deixa de depender de aspectos teológicos, e ganha um modelo de argumentação que influenciará toda a filosofia moderna.

Desde Aristóteles substância é um conceito importante. Subsistir é permanecer em meio às transformações – a sustância é o fica mesmo diante das transformações da realidade. O “cogito ergo sum” revela uma substância pensante que é a consciência. Todas as outras características do indivíduo foram postas em dúvida – seu corpo, seus desejos, sua cultura, sua história. Tudo isso é variável e não poderia servir de apoio para erguer uma ciência universal. Somente sua característica pensante é presença contínua. Pensar é desdobrado em outros verbos, todos retirados do exercício realizado pela consciência: “coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente” afirma Descartes em sua segunda meditação metafísica. E em todos esses atos há referência a uma infinidade de objetos conhecidos.

Assim, olhando melhor para o sujeito do conhecimento, temos que reconhecer que ele é o observador do mundo e carrega uma grande quantidade de representações. Conhecimento que até agora parecem incertos, sejam sobre o mundo, geometria, política ou qualquer outro tema. Esse sujeito pensa sobre muitas coisas e é preciso desatar um nó: como encontrar em meio de tantas representações do mundo aquelas que servem como conhecimento da verdade? Solucionando esse nó poderemos identificar entre os conhecimentos inseguros, aqueles que pela força de evidências, se mostrarão confiáveis.

 

 

AS IDEIAS INATAS E SEU PAPEL

É importante termos a noção de que para Descartes o conhecimento é uma representação na mente, e mesmo as informações dos sentidos só terão função para a consciência e não significam nada fora dela. Se as coisas sobre as quais se pensa são reais ou não é um tópico importante, mas não podemos negar que para a consciência possuí-las precisa de uma ou várias fontes.

Descartes identifica três tipos de representações ou ideias na mente: “umas me parecem ter nascido comigo, outras ser estranhas e vir de fora, e as outras ser feitas e inventadas por mim mesmo”, afirma na terceira meditação metafísica. As ideias que vem de fora chama de ideias adventícias. São aquelas que atribuímos as experiências ou aos sentidos, e falam das coisas materiais. Aqui se considera que a matéria só apresenta exemplares que precisam ser identificados pelas ideias, de forma que a matéria não fornece ideias propriamente ditas. As feitas pela mente são as ideias fictícias. Entendendo que essa são produções da imaginação, não representariam a realidade. A imaginação se utiliza das informações que vem de fora para as suas criações, de forma que depende das ideias adventícias. Por fim, as ideias que parecem nascer conosco são as ideias inatas.

Descartes se convenceu das ideias inatas porque certas noções não poderiam ser recebidas de coisas materiais. Noções como infinito ou Deus, não tem precedente na experiência, portanto, não podem vir de fora, nem ser criação da imaginação, pois esta não teria matéria prima para isso. Portanto, se não foi uma ideia recebida de fora, nem criada, Descartes considera que tal noção é inata na mente, ou seja, não adquirida, mas faz parte de um patrimônio da mente. Essas ideias inatas seriam os instrumentos da mente para a compreensão do mundo, permitindo a leitura das ideias adventícias que carregam as informações do mundo. 

Mas como é possível que a mente possua tais ideias? Descartes considera que a consciência, sendo uma substância finita, não poderia produzir por ela mesma a noção de infinito, nem a noção de Deus. Somente um ser dotado da infinitude poderia ser a fonte do conhecimento sobre o infinito, e somente Deus poderia ser a fonte do conhecimento sobre ele. Como fonte do conhecimento, Deus é anterior e independente da consciência e o único ser concebível capaz de ser a origem das noções inatas que a mente possui.

Por fim, torna-se óbvio que o único caminho para promover uma ciência dedicada à verdade, é orientá-la pela luz da razão, estruturando o conhecimento a partir das ideias inatas que dão a compreensão necessária as informações que recebemos sobre a realidade. Seu estilo argumentativo racionalista se diferencia da filosofia medieval, realizando uma reformulação da metafísica, partindo do que chamamos de gnosiologia, o estudo da capacidade de conhecer a partir do ato cognitivo. Descartes, então, deu início a grande discussão da filosofia moderna, que se desdobrará em reflexões de outros racionalistas (como Leibnitz e Espinoza), na sua oposição com o empirismo (como os de Locke, Berkeley e Hume) ou em tentativas de solucionar a oposição (como é o caso de Kant). Discussão que, para os modernos, foi considerada prioritária, e criadora das condições de reflexão nos outros campos de conhecimento, como a ética e a política.