Thomas Kuhn - A função do dogma nas investigações científicas

[trechos da apresentação]

 

(...)Muitos dizem que ciência e dogma não se misturam; são duas visões de mundo radicalmente opostas; tão opostas quanto, por exemplo, luz e sombra, noite e dia etc. O ensaio que você lerá a seguir pretende, no entanto, mostrar algo bastante inusitado a esse respeito. Ele pretende mostrar que os dogmas estão também presentes na ciência. E estão aí presentes não como um acidente de percurso, uma consequência indesejável ou algo assim. Pelo contrário, se concordarmos com o autor do ensaio a seguir, reconheceremos que os dogmas são tão indispensáveis à ciência quanto são, por exemplo, os seus métodos de medir e de quantificar os acontecimentos no mundo. Isso significa que uma certa dose de dogmatismo – isto é, de crenças das quais não desejamos abrir mão com facilidade – é "uma característica funcional e um fato inerente ao desenvolvimento científico maduro".

O autor dessa última frase, retirada de uma das passagens centrais do ensaio publicado a seguir, é o filósofo norte-americano Thomas Samuel Kuhn, que nasceu em 1922 e faleceu em 1996. Kuhn fez toda a sua formação acadêmica na área de física, sempre na Universidade de Harvard (EUA). (...)

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Também foi decisivo para a elaboração das ideias de Kuhn o período (1958-1959) em que ele atuou como pesquisador convidado num centro de pesquisas em ciências humanas na Universidade de Stanford, nos EUA. Foi nesse período que ele formulou um de seus principais conceitos: o conceito de paradigma, que lhe rendeu tantos elogios quanto críticas dos mais diversos pontos de vista. Na sua convivência com pesquisadores das ciências humanas, Kuhn constatou que havia frequentes desacordos entre eles e que esses desacordos não se limitavam a, por exemplo, saber qual seria a melhor explicação para um determinado fenômeno social ou psíquico. Essas divergências atingiam aspectos tão elementares do trabalho desses cientistas quanto, por exemplo, quais seriam os problemas aos quais deveriam se dedicar ou quais seriam os métodos mais adequados para investigá-los. Kuhn percebeu, em seguida, que controvérsias da mesma magnitude poderiam ser identificadas também nas ciências naturais, mas que – ao contrário do que ocorre nas ciências humanas – essas controvérsias eram frequentemente alternadas por períodos razoavelmente longos de consenso e concordância entre os cientistas. Ele, então, passou a considerar que essa diferença poderia estar na base das mais expressivas diferenças que todos podem perceber nos trabalhos, de um lado, de historiadores, sociólogos ou psicólogos e, de outro lado, de físicos, químicos ou biólogos.

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Segundo a abordagem inaugurada por Kuhn, o interesse do filósofo da ciência deveria estar voltado sobretudo para aqueles momentos em que os cientistas realizam mudanças generalizadas no seu modo de ver o mundo e de praticar o seu ofício. Foi por pensar desse modo que Kuhn concentrou sua atenção na identificação de uma estrutura, isto é, uma configuração mais ou menos constante de elementos que motivam e operam as mudanças mais radicais na história da ciência – episódios esses que mesmo antes de Kuhn já eram caracterizados como “revoluções científicas”.

 

De modo sumário, as revoluções científicas são episódios que, segundo Kuhn, dependem da seguinte configuração de acontecimentos sequenciais: ciência pré-paradigmática (atividades desorganizadas), ciência normal, época de crise, ciência extraordinária, revolução científica e, por fim, um novo período de ciência normal e o consequente reinício cíclico do mesmo percurso. O conteúdo de cada revolução científica é, obviamente, específico de cada ciência particular. Normalmente, após atingir um amplo reconhecimento dos seus efeitos sobre a comunidade científica, as revoluções tornam-se conhecidas pelos nomes de seus principais protagonistas: revolução copernicana, revolução newtoniana, revolução lavoisieriana, revolução darwinista, revolução mendeliana, revolução einsteiniana etc. O que Kuhn sustentou é que, apesar da enorme diversidade de conteúdos entre todas essas ditas revoluções científicas, elas compartilham uma configuração comum, isto é, uma estrutura, que poderia ser descrita pelo percurso sequencial daqueles estágios acima, onde basicamente se alternam períodos de ciência normal e ciência extraordinária. Vejamos, então, com mais detalhes cada um daqueles estágios.

O estágio pré-paradigmático é o estágio embrionário de um campo de conhecimento em vias de se tornar uma ciência. Como o próprio nome diz, ele é caracterizado pela atividade exercida por uma comunidade científica antes da aquisição de um paradigma. Mas o que é um paradigma? Talvez essa seja a pergunta que mais foi dirigida a Kuhn, seja por seus críticos seja por seus partidários. Para os nossos propósitos neste texto, podemos nos limitar a compreender um paradigma como sendo um conjunto de crenças, regras, compromissos e valores que são compartilhados pelos cientistas por um determinado período de tempo e que confere à sua atividade investigativa a unidade mínima que lhes permite constituir uma comunidade científica.

Se assim compreendemos o que seja um paradigma, o estágio pré-paradigmático deve ser, portanto, caracterizado por aqueles momentos em que uma determinada ciência é praticada sem que haja consenso entre os cientistas sobre quais devem ser as crenças, regras, compromissos ou valores que deverão ser aceitos por todos no intuito de promover a unidade e o progresso daquele campo de investigação. Esses momentos serão, assim, marcados por uma intensa competição entre diversas concepções sobre aqueles elementos estruturantes da prática científica. (...)

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Os períodos de ciência normal têm início quando ocorre uma convergência dos debates pré-paradigmáticos em direção a um conjunto comum de normas, regras, crenças e valores. Nesses momentos, à medida que os cientistas passam a compartilhar concepções comuns acerca dos aspectos teóricos e práticos mais relevantes do seu campo de estudo, diminuem a intensidade dos debates sobre questões acerca dos fundamentos dos seus objetos de investigação. Quando se consolidam os períodos de ciência normal, a atividade exercida pelo cientista volta-se então para ampliar e refinar a articulação entre os fenômenos e as teorias. (...)

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Os cientistas adeptos de uma determinada tradição da ciência normal têm, portanto, como atividade regular – isto é, normal ou ordinária – a resolução de quebra-cabeças. Tal como no jogo com o qual Kuhn traça a analogia, não é suficiente juntar as peças para remontar um quadro ou uma paisagem, pois é necessário encaixá-las de acordo com o formato particular de cada uma delas e posicioná-las com uma determinada face virada para cima. O paradigma fornece as regras do jogo, dá orientações sobre como devem ser dispostas as peças e traça o objetivo a ser buscado por cada jogador. Quebra-cabeças são, portanto, problemas científicos com solução assegurada, problemas cujas respostas somente a falta de habilidade dos cientistas pode impedi-los de encontrar.

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Todavia, frequentemente os cientistas deparam-se com comportamentos da natureza que não se encaixam nas especificações oferecidas pelo paradigma em vigor. Esses comportamentos são chamados de anomalias. Uma anomalia, nesse contexto, é um comportamento da natureza que não coincide com a expectativa gerada com base no paradigma vigente. Os cientistas invariavelmente tentarão trabalhar o seu paradigma com o intuito de, com pequenas modificações, adequarem-no à natureza. Mas nem sempre as anomalias poderão ser dissipadas.

O ato de dissipar uma anomalia é frequentemente associado a uma descoberta. Ao “descobrir” algo, o cientista torna-se capaz de explicar um número maior de fenômenos previamente conhecidos, visto que muitas vezes uma tal ampliação requer a substituição de alguma crença ou de algum procedimento. Mas, se por outro lado a anomalia resiste a todas as tentativas de dissipá-la e persiste por muito tempo, ela provoca uma redução do grau de confiança com que os cientistas aderem ao paradigma com o qual trabalham. O efeito imediato desse declínio da confiança é o aumento da insegurança com que os cientistas praticam seu ofício. Um grau acentuado de insegurança, por sua vez, pode ter como consequência a instauração de uma crise no paradigma vigente.

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Quando uma crise está definitivamente instalada, inicia-se um novo período em que se pratica a ciência na ausência de um paradigma único que unifique e coordene os trabalhos dos vários cientistas. Kuhn considera que nesses momentos – que se assemelham aos períodos pré-paradigmáticos – a ciência é praticada como ciência extraordinária, visto que em lugar do consenso há, agora, um profundo dissenso entre os cientistas. Nesse momento, desaparece aquilo que Kuhn chama no ensaio logo a seguir de “exclusividade dos paradigmas”, que ele próprio assim explica: se um determinado grupo “tem mesmo um paradigma, só pode ter um.”

A ciência extraordinária – a contraparte da ciência normal – é marcada pela disputa entre duas ou mais concepções teóricas rivais acerca das “reformas” que devem ser operadas no antigo paradigma a fim de dissipar a anomalia em questão. Nessa disputa, cada grupo utiliza os seus próprios recursos metodológicos e conceituais para argumentar a favor da concepção particular que defende. (...)

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Mas o que realmente deve deter nossa atenção nessa concepção proposta por Kuhn sobre as chamadas “revoluções científicas” é o fato de que ele jamais menciona a falsidade das antigas teorias abandonadas nem a verdade das novas teorias aceitas. Para Kuhn, as revoluções nada têm a ver com a verdade das teorias. A ciência, apesar de aparentar ser um empreendimento cumulativo e estar em constante progresso, não deve ser compreendida como uma atividade voltada a um único fim ou que se aproxima cada vez mais da verdade. O progresso, nesses termos cumulativos e lineares, acontece somente durante os períodos de ciência normal, dentro de um paradigma em vigor – onde as noções de verdade e de falsidade podem ser aplicadas corretamente e fazem sentido. Ao ser aceito pela comunidade após uma revolução científica, um novo paradigma, em geral, é capaz de explicar apenas alguns daqueles problemas que o anterior explicava. Isso explica por que, com frequência, muitos problemas antes relevantes são abandonados após uma revolução científica. O processo de mudança pelo qual passa a ciência não pode ser comparado com um processo linear no qual tijolos são adicionados um a um visando a conclusão de um único edifício. Neste processo há perdas e ganhos e, portanto, ele não deve ser descrito como conquista de um único território. Não existe o melhor paradigma para qualquer situação possível. O que existe é o melhor paradigma para determinados fins, fins esses que também podem ser amplamente modificados com o tempo.

 

 

Kuhn, Thomas. A função do dogma na investigação científica. Organizador: Eduardo Salles O. Barra; tradução: Jorge Dias de Deus. Curitiba : UFPR. SCHLA, 2012.